Sobre Gênios
e Desenhos das Traças
Eis que me deparo a
percorrer sinuosos bordados, às margens de algumas folhas de papel, criados
pelo trabalho incansável e paciente das traças.
Em outros casos,
estaria a lastimar a ação impiedosa de tais insetos ante a perda da integridade
de algum documento de reconhecida valia, mas não aqui.
Neste caso, expressa e
deliberadamente, desapego-me da posse e da mágoa e debruço-me, ao amparo da
minha coragem, a urdir, como em linguagem silenciosa que apenas a mim fosse
permitido ouvir, outros pensamentos, outros significados.
Trato aqui dos desenhos
criados pelos perseverantes artrópodes nas margens das laudas que compõem um
repertório de afetos, disfarçado em livro de anotação de presenças do Mini
Museu Firmeza, apostos como registros na última parte deste Hoje e o tempo
passado e Um encontro com as lembranças, de Estrigas. Neles vejo o tempo. Não um tempo cruel e
implacável, mas aquele, sereno e necessário ao engendramento da história, à
acumulação dos feitos e à acomodação das memórias.
Vejo a força da
persistência, da dedicação e da desvelada determinação em resistir, mesmo em
restantes fragmentos, a serem buscados e escandidos, registrados e impressos,
em minúcias, para servirem de alimento a futuras fomes de saber e, também, a
outras traças - quem sabe - a causar naqueles, perversos prejuízos.
Dizem-me tais
interferências, da paz, da quietude, do aconchego e da benquerença cravados e
estampados nas árvores e flores, nos tetos e nas paredes, nos sorrisos e nos
semblantes, e até no tractraquear das rodas de trem, já ente de casa, sobre os
trilhos e dormente, seladas como legado permanente e exuberante da chácara dos
Fimeza e dos seus habitantes.
Garimpando vestígios
por entre os desenhos dos insetos, vejo o exercício do retorno às lembranças
lavradas – mas nem sempre legíveis – nas, tal qual as bordas do papel, sinuosas pistas da memória.
Observo ainda a
consciente manutenção de existências, moldadas exclusiva e deliberadamente
sobre a arte que exercem intencionalmente ou não. Isto porque, ao olho do
leitor atento e bem treinado nos domínios da linguagem da arte, esta pode, sem
sacrifícios de conceitos, ser constatada no rendilhado aleatório do recorte
executado pelas traças às bodas das folhas de papel. A elas – as traças – no
entanto, talvez não importe chegar a tal estado estético que, ao defender a
manutenção de sua curta existência, terminam, indeliberadamente, por promover.
Diferente dos pequenos
devoradores de papel, o autor desta obra, artista de escol e pesquisador cioso
e severo, a quem tenho orgulho de chamar de amigo, ao lado de sua Nice musa
companheira, faz arte de moto próprio, promove-a deliberadamente por escolha e
paixão quando empunha seus instrumentos e dá asas à sua imaginação e
criatividade, revelando a magia das formas, das cores e das palavras ou, apenas
a faz, sem nenhum esforço ou proposição deliberada, simplesmente sendo o
Estrigas que é.
Ainda em sinuoso
raciocínio, segui Estrigas em cada página desta obra e o constatei como o que
retorna, sem pressa e sem temor, às nervuras do tempo e lá cuidando de
recolorir e reavivar os rascunhos quase desbotados das suas lembranças mais
caras. Vejo-o pintar em tons pastel, com suas usuais competência e paixão, sua
paciente e disciplinada trajetória de cidadão, pensador e artista. Vejo-o quase
Zen ao escolher a maturidade como opção de postura para a sua interpretação dos
valores do tempo. Vejo-o um crítico/historiador que não se rebela em atitudes
dramáticas, mas também não lega ao somenos o seu papel de observador, que
mantém atento, das sinuosas venturas e desventuras da arte e da cultura,
mormente aquelas da cidade que abraçou.
Vejo a mim, por
derradeiro, agradecido por ter aprendido, mediante olhos sábios, a perceber o
tempo, as traças e os seus feitos, para entender um pouco mais sobre esse
exemplar de gênio que caminhou sempre, e apenas, sobre a urdidura da sua
coerência.